ZEN E A ARTE DA MANUTENÇÃO DE MOTOCICLETAS – Uma Investigação Sobre os Valores
- Angelo Salignac
- 7 de jun. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 22 de ago. de 2021
Livro de Robert M. Pirsig, Martins Fontes, 2007, ISBN 978-85-336-2337-8.

Em junho de 1968, no auge do movimento hippie, o norte-americano Robert M. Pirsig enviou pelo correio 122 cópias de uma carta a vários editores oferecendo seu livro, que intitulou “Zen E A Arte Da Manutenção De Motocicletas”, nascido a partir de um pequeno ensaio bem-humorado tratando sobre diferentes abordagens a respeito da manutenção de motocicletas. Pirsig gostava de se referir ao livro como ZMM.
Pirsig explicou, em sua carta, que “o livro é, como o título diz, sobre Zen e sobre manutenção de motocicletas, mas também sobre uma unificação entre sentimento espiritual e pensamento tecnológico. Parte de sua tese é que essa divisão é uma raiz profunda do descontentamento de nossa época e oferece algumas soluções heterodoxas”.
Diz a lenda que, dos editores consultados, 121 rejeitaram a obra, mas isso não é correto: 22 editores responderam positivamente às cartas de Pirsig, mas apenas um deles ofereceu um adiantamento de US$ 3.000: um jovem editor da William Morrow & Company convenceu seu diretor e o resultado foi épico: mais de um milhão de cópias em um ano.
Não: não se trata de um manual de pilotagem ou mecânica de motocicletas.
Sim, é verdade: em um nível filosófico de surpreendente qualidade algumas lições são ensinadas. Pilotar uma motocicleta segue certas regras da física que dificilmente se entendem intelectualmente, mas que o seu corpo, em algum nível instintivo muito à frente das funções cognitivas, aprende a aceitar. Por exemplo: é mais fácil manter o equilíbrio ao rodar velozmente. Para se sentir equilibrado em uma moto, o motociclista deve estar disposto a se libertar da ilusão de controle. Quando se trata de motocicletas e física, tudo parece contraditório e sem sentido.
O livro conta que Pirsig e seu filho Christopher, então com 11 anos, acompanhados por um casal de amigos, fazem uma longa viagem de motocicleta pelo interior dos Estados Unidos da América. A estória foi a inspiração para um diário lírico, evocativo e instigante da busca de um homem pela verdade - e por si mesmo – e influenciou toda uma geração. A narrativa é simples, mas a viagem se torna complexa pois, em cada esquina, através da montanha e do deserto, vento e chuva, calor escaldante e frio cortante, a peregrinação nos leva a novas perspectivas de autodescoberta e renovação. Mesmo quem nunca tenha pilotado uma moto se emociona com a descrição singela da jornada e das paisagens, o clima, as sensações.
Trata-se de um trabalho fundamental que ajudou a moldar e definir profundamente a cultura americana, não apenas os aficionados pelo motociclismo. O livro rapidamente se tornou um best-seller e provou ser uma duradoura obra de filosofia popular.
Um aspecto encantador do livro é a habilidade com que o autor nos conecta à sua viagem filosófica, sua capacidade de ensinar o amor à tecnologia e encarar os difíceis enigmas filosóficos levantados na década de 1960.
O protagonista tenta resolver os conflitos entre valores "clássicos" que permitem a criação de máquinas como as motocicletas e valores "românticos" como a beleza de uma estrada rural. Ele descobre que todos os valores encontram sua raiz numa metafísica que chama de “Qualidade” (assim mesmo, em maiúsculas...). Sua meditação sobre a “Metafísica da Qualidade” contém algumas das mesmas lições contra-intuitivas, necessárias para se equilibrar em uma motocicleta, e que também se aplicam à escrita e à vida em geral. Em seu cerne, ZMM é um argumento filosófico que busca conciliar humanidade e tecnologia.
Pirsig convida os leitores a explorar o terreno filosófico ou intelectual dentro de um conto da vida cotidiana. Quando colocados em primeiro plano contra sua luta pessoal contra a esquizofrenia e seus esforços para dar sentido às coisas enquanto ele pilota pelo interior de seu país, esses exercícios intelectuais tornam-se necessários para compreender suas escaramuças interiores; o leitor quer saber mais sobre o que o narrador está passando e está disposto a fazer o trabalho pesado de peneirar suas teorias para chegar a revelações mais amplas. Se a narrativa tivesse omitido a jornada pelos quilômetros de estradas solitárias, o relato restante teria corrido o risco de se tornar uma polêmica seca e esotérica, em vez de revelação para milhares de seus admiradores: pessoas se preocupam com pessoas. Convocar os leitores ao trabalho árduo, necessário para desvendar ideias complicadas, é o objetivo desse exercício de conexão humana.
Quase cinquenta anos após sua publicação, ZMM também serve como uma espécie de fonte primária para qualquer um que estuda a história do Budismo na América do Norte, tendo sido o primeiro contato com o Zen para muitos não integrantes da comunidade asiático-norte-americana. E permanece igualmente fascinante por seu conteúdo puramente autobiográfico, o relato da profunda luta espiritual de um homem e o eventual vislumbre da iluminação. Se Pirsig pôde enfrentar seus demônios, que não eram poucos, encontrando alguma aparência de paz interior, talvez haja esperança para todos nós.
Para viver uma vida totalmente plena o trabalho nunca termina. Devemos continuamente questionar suposições, explorar contradições e aprender a lição muitas vezes dolorosa, mas essencial - e que as motocicletas nos ensinam a cada quilometro percorrido: é necessário enfrentar o que nos assusta, em vez de recuar.
Robert Pirsig morreu de causas naturais em 1988, aos 88 anos. Seu filho Christopher, que o acompanhou na épica viagem, foi assassinado, vítima de um assalto em 1979, poucos dias antes de completar 23 anos.
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